PEC pode mudar forma como terrenos da costa brasileira são geridos

PEC pode mudar forma como terrenos da costa brasileira são geridos

A costa brasileira é um território sensível às mudanças climáticas e essencial para a redução da vulnerabilidade, e sua gestão é ponto-chave frente a eventos extremos e ao potencial aumento do nível do mar. Agora, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que está no Congresso Nacional – a PEC 3/22 -pode mudar a forma como essas terras são administradas.

Essas áreas são chamadas de terrenos de Marinha, segundo o Decreto-Lei 9.760/46. Essas terras pertencem oficialmente à União, e quem tem direito a usá-las segue o regime de aforamento ou de ocupação e precisa pagar taxas pelo uso. Nos casos de aforamento, a pessoa tem direito vitalício ao imóvel, e o foro anual é equivalente a 0,6% de seu valor. Já no caso de ocupação, a taxa pode variar de 2% a 5% sobre o valor da área, e ainda assim a União pode requisitar o imóvel. O laudêmio, por sua vez, é uma taxa de 5% sobre o valor de venda do repasse desses imóveis. Atualmente existem cerca de 500 mil imóveis no país classificados como terrenos de Marinha, dos quais aproximadamente 271 mil aparecem registrados em nome de responsáveis únicos (pessoas físicas e jurídicas), segundo a Agência Câmara de Notícias.

A PEC que tramita no Congresso Nacional propõe transferir gratuitamente os terrenos de Marinha ocupados da União para os Estados e municípios, e também para habitações de interesse social. No caso de pessoas físicas e jurídicas, a transferência poderá ser feita mediante pagamento. As áreas não ocupadas seguirão sob domínio da União, bem como as unidades ambientais federais, entre outras. Caso aprovada, o governo terá dois anos para efetivar essas transferências. Com essa mudança, após a transferência, a União deixará de cobrar foro, laudêmio ou taxa de ocupação.

A proposta também prevê a possibilidade de expansão do perímetro urbano com a destinação de áreas não ocupadas, caso o município solicite e o planejamento urbano esteja de acordo com as normas vigentes. Outro detalhe é que ocupantes não inscritos, ou seja, que até o momento não estão sob regime de aforamento nem de ocupação, poderão recorrer para a compra do terreno, mediante comprovação de ocupação de no mínimo cinco anos antes da publicação da PEC.

Para além da questão fiscal, esse é também um desafio de gerenciamento costeiro na contenção do crescimento da urbanização em áreas naturais. É possível observar que o aumento no volume de construções é uma tendência em todo o litoral brasileiro, endossada pela atuação de construtoras e empresas de turismo, e por projetos de lei que visam a modificar a gestão desses territórios.

A FAVOR DA MUDANÇA

Quem defende a mudança prevista na PEC 3/22 destaca a importância de revisar os aspectos fiscais dos terrenos de Marinha, bem como os incentivos da PEC para o desenvolvimento econômico de municípios. Para o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que foi o relator da PEC original sobre o assunto na Câmara dos Deputados, a emenda não tem nenhuma relação com demarcação ou novos empreendimentos. “Ela busca exclusivamente garantir o direito de propriedade aos moradores, tendo em vista que já estão em cima da área; e acabar com a bitributação, já que são pagos impostos federais e municipais. Inclusive prefeituras que respondem pela manutenção dos espaços, como ruas, calçadas, iluminação e saneamento. Não é a União que faz isso. A proposta permite que os ocupantes demonstrem interesse em transferir os imóveis para os seus nomes nos próximos anos, através de critérios a serem estipulados pela Secretaria de Patrimônio da União, com o valor e prazo de pagamento parceladamente”, explica o relator. Com 389 votos a favor e 91 contrários, a PEC passou pela Câmara e chegou ao Senado, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, com relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). A expectativa é que seja votada apenas após as eleições.

PREOCUPAÇÕES

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder da oposição do governo, acredita que essa é uma proposta importante a ser apreciada, mas tomando alguns cuidados. “Do ponto de vista tributário, é preciso rever a lei que definiu as áreas litorâneas em 1930 como área da União, porque hoje isso cria transtornos para municípios e capitais brasileiras que recebem tributação dupla. Reconheço que a PEC em questão tem um caráter especulativo, mas tem também um caráter social. Assim, é preciso aprofundar e criar mecanismos para onde for área de preservação ambiental e compreender que são questões distintas: o contexto urbano e o contexto de áreas de proteção ambiental”.

Quem é contra a PEC leva em conta os aspectos ligados à crise climática e à pressão de novos empreendimentos sobre comunidades e ecossistemas, além das problemáticas do gerenciamento costeiro. Segundo parecer técnico apresentado pelo Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), ligado à Frente Parlamentar Ambientalista, “a importância ecológica desses ambientes será comprometida, a médio e longo prazo, causando prejuízos para a pesca e intensificando as mudanças do clima. Em especial, os terrenos marinhos estão na linha de frente do movimento do oceano costa adentro”.

Segundo o documento, “os terrenos de Marinha ainda continuam tendo um papel na proteção do país, mas não mais contra nações inimigas e sim contra um processo que tem origem em nós mesmos: o efeito conjugado dos impactos locais e das mudanças globais na zona costeira”. A especulação imobiliária é a principal problemática desta PEC, avalia Isabelle da Silveira, secretária executiva do Painel Brasileiro Para o Futuro do Oceano do PainelMar.

“Pode até beneficiar a comunidade, que terá direito à propriedade, mas quem conhece o litoral brasileiro sabe o que acontece: acaba tendo muita pressão nessas populações e elas acabam tendo que vender o seu terreno na beira da praia e vão para áreas mais marginalizadas dos municípios. Sem falar no desmatamento de manguezais e restingas, importantes para o equilíbrio desses ecossistemas”, comenta. “Iniciativas como essas, que abrem margem para privatização e especulação imobiliária, acabam fragilizando ainda mais o gerenciamento costeiro no Brasil, que apesar de possuir vários instrumentos, como Projeto Orla e Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro (GERCO), são subutilizados e não há integração”, complementa Isabella.

DEFESA DO ‘PACOTE AZUL’

Frente aos desafios que se apresentam com a iminência dessas alterações na gestão de territórios costeiros, Flávia Bellaguarda, fundadora da Latin American Climate Lawyers Initiative for Mobilizing Action (Laclima), fala sobre a importância de ações de conscientização e educação ambiental para criar uma mobilização social em torno da defesa do Oceano e das zonas costeiras. “Com o modelo de gestão da costa descentralizado, vai ficar muito mais difícil saber os casos de exploração com as dimensões continentais do Brasil. Será que não é o momento de criarmos o Pacote Azul, a exemplo do Pacote Verde que mobilizou a população em defesa da Amazônia? É importante enfatizar os efeitos desses movimentos junto às populações locais e correlacionar o enfrentamento com caminhos já traçados no Brasil e, claro, não se limitar a eles. O setor privado também pode ser um aliado da sociedade. De toda forma, é hora de montar uma agenda azul, que defenda o oceano para todos”.

FOTO: Divulgação